[From page 98]
Faz um ano, mas nada parece ter mudado. Faz um ano que me tornei um homem opaco, sem vida , sem sonhos e sem razões. Faz um ano que passava pelos cômodos luxuosos à procura de um único rosto. Faz um ano que tento ouvir e tocar a nossa música, faz um ano que você se foi.
Minha rotina era simples: acordava cedo , olhava e tocava o local que você deveria estar, pensava se deveria mesmo continuar ou simplesmente desistir, mas então me lembrava que você não gostava de moleza. Levantava-me e lavava meu rosto, encarava o espelho e me perguntava como ainda estava vivo.
Enchia a banheira, tomava um banho demorado onde lembrava de você sorrindo como uma criança ansiosa para a banheira encher. Após o banho, colocava uma roupa apresentável para disfarçar minha alma escura e destruída, mas nem mesmo um dos melhores estilistas da França poderia disfarçar meus olhos fundos e vermelhos de mais uma noite.
Fazia o caminho devagar antes de chegar ao salão de refeições, passava pelo sala de estar e fechava meus olhos para evitar lembrar de você sentada no sofá de cetim vermelho lendo seu livro, passava pelo longo corredor uma vez limpo e colorido de quadros. Na sala de refeições a mesa retangular era ocupada apenas em um espaço onde um prato com boa aparência e cheiro se encontrava.
Na casa, agora só vivia eu, uma servente que nem mesmo via o rosto (a pedido meu), e a sua alma, ou ao menos eu almejava que você não tivesse ido embora completamente. Você foi ? Na mesa, sentava no meu lugar de costume , encarava a sua cadeira e falava mentalmente ” Não vai dizer Bon appétit ? ” era o que você dizia sempre antes de comer. Encarava a comida com desgosto pois desde que você se foi nada tinha mais gosto e a vontade de comer pouco existia.
O resto do dia era também monótono; seguia pelas ruas parisienses encarando o chão e as construções escuras do movimento romântico. As indústrias já soltavam suas fumaças escuras e o som de máquinas podia ser ouvido. Seguia para mais um dia de trabalho, talvez era o único lugar que não estava com você na minha cabeça. O barulho ensurdecedor, me mantinha acordado enquanto fazia meu trabalho.
A noite, acho que era o momento mais difícil para não pensar em você. Enquanto voltava, encarava as luzes incandescentes que iluminavam a cidade. Meu coração sempre morria de ansiedade na espera de poder te encontrar na frente da porta e receber-me com um doce beijo e o cheiro de comida pré-pronta como era de costume. E quando chegava, para minha decepção, a escuridão era a única coisa que se encontrava ali.
Fazia todo o caminho e olhava os lugares que você deveria estar. A noite era longa, meu sono nunca vinha, seguia para a sala principal, seu lugar favorito, o seu piano preto continuava no mesmo lugar, perto da janela; e da minha mesa de trabalho, onde nós costumávamos ficar até tarde. Você tocava o piano enquanto eu a admirava e dava a desculpa que estava vendo uns papéis do trabalho, nunca te contei, mas esses papéis eram meus poemas sobre quão bela era te ver tocando a nossa música.
E noite passava, sentado em minha cadeira, a sala estava escura, a única iluminação vinha da rua e do pequeno abajur de mesa sobre meus papéis. Larguei então ,mais uma vez, a pena que manchou um papel já usado e descartado com o resto de sua tinta. Desviei meu olhar para a janela e o seu piano, não tinha mais motivação de viver.
Queria te ouvir tocar, reclamar que eu não estava concentrado no trabalho, sentar do seu lado com uma xícara de chá… ah, por que ainda continuo? Não seria mais fácil desistir? Já me sentia um morto vivo, qual seria a diferença de morrer completamente? Será que poderia te ver uma última vez e então dizer o quanto eu te amo e preciso de você?- Sim, essas perguntas sempre rondavam minha cabeça.
Não percebi que mantinha os olhos fechados, quando então uma forte luz iluminou a sala antes escura, ao abrir meus olhos não acreditei no que via; os papéis e a tinta caíram, levantei-me, repentinamente surpreso.
- Mas… O que?! É você , querida?
Sim, com certeza é. Seus cabelos loiros presos em um coque alto, sua pele branca vestia um vestido branco te deixando mais bela e angelical mas ao mesmo tempo sobrenatural. Os sons das teclas pretas e brancas ressoavam pelo quarto, era nossa música que seus dedos angelicais tocavam. Estou delirando, era real, você não se foi completamente !? Ou será que morri? Enlouqueci ?
- Querido – uma voz angelical me tomou os ouvidos, junto a música. – Não desista, não desista, não te deixei – a sua voz era melodiosa – mas siga em frente, nos encontraremos em breve. – e sua luz desaparecia
- Não, não vai!! Eu te amo , não me deixe !
- Nos veremos em breve – você disse como um doce canto enquanto o som melodioso da última nota foi tocada e assim você se foi.
Jogado ao chão, esqueci da hora , esqueci o frio, perguntas me rodeavam , e lágrimas encharcavam as minhas roupas. Desistir ou continuar? Quero te ver, meu doce anjo.